prosa

Resistência

Ela guardava dentro de si muitas coisas que não dizia. Era um passado que, disseram, não poder falar jamais. Era um desses tipos de coisas que, mesmo fazendo parte de sua vida, de sua história, por diversos motivos, achou que talvez pudesse deixar para depois da morte. Anos de uma vida posto em segredo para que ao menos a próxima geração não passasse pelo que ela passou.

Mas a vida não é assim que funciona. Por mais que tentemos esconder, sempre carregarmos vestígios do nosso ser. Essas coisas sutis que acabam por nos entregar no dia-a-dia: as comidas prediletas, as brincadeiras nos momentos de alegria, a própria definição de “momentos de alegria”, a forma de encarar o mundo e as pessoas, o jeito de andar, os fios de cabelo da cabeça e a ausência deles no restante do corpo, a cor da pele. Até parece que a história que gostaria de esconder (ou que todos gostariam de esconder) insiste em brotar, se mostrar como planta que brota entre as trincas de um cimentado, denunciando que ali existia uma semente.

Denúncia. Talvez esse seja o formato da história que se mostra e que alguém gostaria de esconder. A vergonha de fazer parte de uma guerra e de não estar do lado dos vencedores (estes sim, conseguem esquecer as atrocidades um dia cometidas) são carregadas na pessoa. É mais que uma tatuagem ou qualquer outra marca difícil de apagar esse genocídio que perdura por mais de quinhentos anos.

Precisa ser forte. Forte o suficiente para que ninguém imagine o tamanho de sua força. É esse o segredo da resistência de seus parentes. Acredita no perdão, já perdoou aqueles que se foram (mais uma prova de sua força), mas ainda carrega consigo as lembranças de sua infância volta e meia embrenhadas em sua vida, mesmo na velhice. Não dizem que os idosos não são aqueles que evoluem e se tornam crianças de novo? Pois bem, carrega consigo as manias meio misturadas com sua vivência, daquilo que foi e daquilo que é. Seus olhos marejam, mas não choram, não por isso (mais uma prova de sua força). Sua força está em suportar as atrocidades cometidas por outros, não só com ela; a sua dor; encontrar novas razões para viver e; quem sabe, deixar um rasto de gostos, de sabores, de jeitos, de alegria e cor para que em algum dia um dos seus a compreenda e se lembre dela. A vida dela não acabou naquele laço de escravidão; persiste nos laços que existem entre cada um dos parentes Puris e de tantos outros povos originários que insistem em deixar a sua marca em todo esse continente.

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