prosa

O que Importa Agora

Encontrara o carro quase limpo após a chuva, Fazia tempo que adiava a limpeza do veículo que empoeirava logo no primeiro dia após lavar, mesmo sem sair da garagem. A poeira da rua não perdoava, Por fora, aparentemente, o carro nunca estivera tão sujo como estava a duas horas atrás, quando fora estacionado.

As ruas também tinham marcas de uma chuva intensa. Nada de destruição, mas o asfalto molhado e limpo denunciava. O escorregador das crianças na praça também indicava em suas partes planas uma considerável reserva hídrica, visto que ali não deveria estar. Ruas paradas ainda se recuperavam do temporal e sem trânsito, voltou tranquilo para casa.

Na praça, em pouco tempo as crianças já deram um jeito de ocupá-la naquele sábado de tarde. Logo as pequenas bundas secariam o escorregador, para alívio momentâneo de suas mães e desespero das mesmas para quando forem lavar suas roupas; a máquina não daria conta daquelas manchas. A felicidade é o que importa agora.

prosa

Alienação

As coisas que via na televisão não mais agradava. Abandonou-a. Aquilo que ouvia no rádio não lhe interessava, largou-o. Achava muito insinuante tudo aquilo que lia nos jornais ditos isentos, mas cheios de argumentações de apenas um lado da moeda, o da coroa; deixou-os às moscas. Não se identificava com nenhum esporte de massas, deixou de acompanhá-los ou de praticá-los. Assim, fora construindo um mundo personalizado, só seu. Fugira de tudo.

Na fuga, deixou o gratuito de lado para pagar por seus aparelhos de ginástica com acompanhamento digital, seus serviços de músicas, de filmes e séries personalizados. Sem saber, ou até mesmo sabendo, entregou-se aos poucos a um sistema perverso de alienação, onde o aprendizado de máquina passou a definir seus gostos, suas vontades. Deixou sua análise crítica que o levou ao isolamento para se isolar sem análise nenhuma, com tudo aquilo que mais odiava se tornando sua realidade. Não criara uma bolha, não participara ativamente de uma bolha, mas pagou para ser colocado passivamente em uma. Paga por uma.

Não é apenas o custo mensal da bolha expressa em sua fatura, seu orçamento familiar. O custo é bem maior que isso. Passou a viver apenas para pagar suas contas de seu consumismo, sua alienação sem mais pensar em nada. Não mais pensa no rumo de sua vida, não mais pensa no rumo de sua humanidade, não mais pensa no seu papel na sociedade, no seu dia-a-dia, seu papel na vida. Não se preocupa em como será o futuro de seus filhos ou se terá filhos. Deixou de aproveitar as boas poesias que a vida lhe apresenta todos os dias. Não mais parou para apreciar os pássaros que ainda resistem mesmo na cidade durante a alvorada. Perde seu sentido de existência.

E agora? Que fará quando acordar?

prosa

Bons Exemplos

A amizade entre eles era difícil de serdescrita. Não tinham quase nada em comum, não tiveram a mesma criação, não tiveram as mesmas oportunidades na vida, não cursaram a mesma escola, não torciam pelo mesmo time, mas ainda assim, tinham um vínculo.

Essa coisa que parece apenas as crianças têm, de se encontrar sem motivo aparente e ali mesmo criar uma relação, meio que por acaso… Pois bem, era um tipo de amizade assim. Nem mesmo eles saberiam como aconteceu de se encontrarem. Fora num ônibus? Talvez. Uma campanha na rua? Pouco provável. A eles isso também não importa. O importante é saber que, se algum da vida precisar, terá com quem contar. Amizade é isso.

Invejam-lhos os que são incapazes de construir uma relação tão próxima com tão pouco. Sem interesses escusos, sem relação de superioridade. Mal sabem eles que para amizades assim, a inveja tem que ser a primeira a ser deixada de lado! Talvez eles tenham até espaço para mais uma pessoa… A vida continua.

Seus filhos serão amigos? Saberão superar as diferenças? Só o tempo dirá. Bons exemplos não os faltam.

prosa

Ferramentas de Risco

Apesar da ferramenta de inteligência artificial causar temor, ela pode ser muito útil em nosso dia a dia. As inúmeras aplicações práticas, que passam por ações que não permitam erro ou em lugares e/ou atividades inóspitas ao ser humano a correções de textos e até mesmo a limpeza de residências. A IA pode facilitar nossas tarefas, reduzir nosso tempo de espera e possibilitar maior ganho de produtividade ou permitir maior tempo e disponibilidade para questões pessoais, melhorando a qualidade de vida.

É compreensível a aversão e o medo que gera dessas ferramentas. Não se sabe qual o potencial destrutivo ou até onde pode chegar. Ao mesmo tempo, empregos podem ser destruídos e o mundo pode não mais ser o mesmo. Somos aversos a mudanças, e isso não é de hoje. No passado, houve até revoltas para destruição de máquinas; isso não impediu o progresso tecnológico e só pelo desenvolvimento dessas máquinas é que a humanidade chegou onde está hoje. Eletricidade era visto como algo demoníaco, no entanto, o que seria de nossas vidas hoje sem ela? O tropeiro, o cocheiro viraram motoristas e ninguém reclama disso. Não seria possível que o motorista se tornasse algo diferente quando os veículos autônomos se tornassem mais comuns? Não seria talvez o trânsito um lugar mais seguro com máquinas que impreterivelmente seguiriam as regras de circulação?

Não é a ferramenta que é o problema maior, e sim o que fazemos dela. Ninguém nega a importância de uma faca na cozinha, mas ela também pode ser usada para a violência. Não devemos temer as mudanças, elas são necessárias. É próprio de nosso planeta as mudanças. Até mesmo a natureza não é imutável. O que hoje temos como verdade, amanhã talvez não mais será. Precisamos sim é estabelecer os limites daquilo que é aceitável e daquilo que não é aceitável, conforme a ética que deve permear todos as nossas ações diárias.

Não é o desenvolvimento tecnológico que coloca nossas vidas em risco. Que venha então o desenvolvimento tecnológico das ferramentas de IA com todas suas possibilidades que podem tornar nossa vida melhor do é e do que já foi; mas que não esqueçamo-nos de nossa essência como seres frágeis e membros de um ecossistema planetário.

prosa

A Negativa do Óbvio

O dia nublado e úmido parecia que as horas não avançavam. A chuva da noite ainda deixou a terra dos vasos seca, com seus conteúdos ainda meio murchos. Não deveria ter confiado na chuva para dar turgidêz às suas plantas. O tempo não é mais como antes. Ano passado, em uma época como essas tinha que esconder os vasos da chuva, chegou a parder alguns pelo encharcamento. Esse ano as coisas estão ao contrário, tem que esconder as plantas do sol, procurar os cantos onde a incidência de luz direta é menor e torcer para que não ressequem tanto.

No Brasil, a imprensa comunica com pesar a notícia que o meio acadêmico já escrevia a uns meses: a observação de clima árido em meio ao semi-árido que não para de crescer. Seca com umidade de Cerrado na Amazônia, umidade de Caatinga no Cerrado, chuvas equatoriais na região subtropical com direito a ventos intensos de ciclones em terras Tupiniquins. Mundo a fora, o frio ataca os continentes ao Norte depois da varreduras de tornados e furacões. A terra treme e os vulcões tentam compensar problemas que não são seus. Fontes menos poluentes de energia deixam de ser uma necessidade e passam a ser um imenso negócio, com todas as intempéries e imposições que o dinheiro leva por onde passa em meio à humanidade. Somado a isso, a indústria bélica de vento em polpa, com mercado que aparentemente só terá fim com o fim de todos nós. E ainda há quem diga que o mundo como o conhecemos não esteja em seus dias finais.

A negativa do óbvio já nos matou.

prosa

O Dia Continua

A noite não foi nada agradável. Foi curta para o sono acumulado. Não dorme a tempo. Quando o despertador tocou, levantar lhe parecia um suplício, precisava de ao menos umas duas horas a mais. O café provavelmente não será suficiente para o alerta necessário durante o dia. Para piorar sua manhã, as notícias às quais corriam o olho não lhe agradava. Pareciam-lhe um grande compêndio de tragédias e de consequências de ações burras da humanidade.

Há muito deixara de ouvir o noticiário local porque ele lhe parecia uma coleção de notícias ruins, parecia que o meio de comunicação ao qual prestava a atenção, seja o rádio ou o jornal local, iriam escorrer sangue com tantos acidentes e crimes cometidos por pessoas de classe baixa da periferia, como se fossem elas os problemas únicos da cidade. Nenhuma crítica à administração local, um grande anunciante, ou dos problemas reais que levaram à situação de abandono das pessoas que cometem a imensa maioria dos crimes que a elas são atribuída. Nenhuma críticas à crise imobiliária que obriga famílias inteiras a escolherem entre comer, pagar o aluguel, colocar a rodos da casa que puderem para trabalhar em condições por vezes análogas à escravidão, em vez de educar seus filhos adequadamente. Nenhuma crítica aos capitais nacionais e/ou estrangeiros que exploram nossos recursos e destroem as comunidades. Nenhuma crítica à violência seletiva que tem vítimas com endereço, cor e classe social definida. Aparentemente, a imprensa tem seus próprios propósitos.

Não se houve falar nas coisas belas que a humanidade produz. Não nos meios convencionais. Ainda bem que existem escritores e poetas para as verdadeiras críticas e para nos lembrar que a vida continua, que ela é bela e carece de nós para que continue a sê-la. O sono bateu, mas o dia continua. Chega de sonhar acordado.

prosa

Mudança de Rumo

O fim do ano estava diferente daquele que estava acostumado. O tempo não mais era o mesmo. Não se lembra de um Natal em que não tivesse tido uma boa descarga do ceu, daquela em que as águas vinham em pequenas proporções por dias seguidos por todo o lado. Na maior parte dos anos, o Natal era debaixo de chuva. Nos poucos intervalos das chuvas, os vaga-lumes aproveitavam a aragem para iluminar as noites em estrelas; já que as nuvens escondiam os astros, os insetos se encarregavam da tarefa de enfeite da noite. Todavia esse ano estava diferente.

Esse ano as chuvas vieram de rompante, em pancadas trazendo em poucos minutos numa mesma área a chuva de dias de uma região inteira. Não é de hoje que a Mãe Natureza tem avisado que mais que promessas, atitudes deveriam ser tomadas em direção à mudança. Todavia nossos esforços de perpetuar hábitos antigos cada vez mais intensos fez que chegássemos à situação atual e que pode piorar. Nossas vidas, contudo, continua como se tivéssemos em uma situação tranquila, como se nada estivesse acontecendo. Na verdade, como se não bastassem as dores de cabeça climáticas, arranjamos ainda mais problemas para o mundo.

Como presente de Natal, algumas famílias receberam um contínuo bombardeio em continuidade dum genocídio em andamento. Sem a perspectiva de resolução desse conflito e de outros em andamento, parece, a humanidade só terá sossego quando toda ela for exterminada. Talvez seja esse mesmo o caminha que trilhamos. O ano virou e as chuvas leves e contínuas chegaram, Atrasadas,m mas chegaram. A terra já perdeu muito do precioso líquido, agora aproveite o que vier. Ela se vira bem. E nós?

Ano novo com velhos hábitos nos tornarão os mesmos egoístas egocêntricos suicidas sanguinários. Depois de nós, porém, a vida há de continuar. Ela é mais resiliente e cumpre suas promessas de continuidade, mesmo que seja necessária a mudança de rumo.

prosa

Para Depois do Natal

Depois do Natal, a novena acabou. Não tem mais aquele sentimento de felicidade, de união, de serenidade que envolvia a todos nos dias que antecedem a data. Fim. Até lá, é quase o fim.

Aquela muvuca toda parece-me mais um golpe de marketing que realmente um sentimento verdadeiro. Até tentam sobrepor, ainda sem sucesso, uma lenda criada sobre O Aniversariante. Mesmo sem a empreitada completa, embutir a ansiedade para consumo, está consolidado. Assim, os sentimentos verdadeiros são escondidos pelos superficiais, sendo completamente substituídos pelos votos de ano novo; votos para um ano novo com vida nova com hábitos antigos.

Até as rezas diminuem após o Natal. As famílias de má hora para a outra viram meras estruturas sociais de um patriarcado que devem existir para manutenção das desigualdades presentes. Mantivessem aquele fervilhar e é provável que, em pouco tempo, lembraríamos que temos uma origem comum e que todas as nossas desavenças e ganâncias não fazem sentido.

Sem deixar de ser clichê, que esse Natal seja diferente; que seja realmente um renascimento da humanidade que existe em nós, independente da religiosidade, das origens. Temos mais uma chance de recomeço, de vida realmente nova e de eterna novena nos dias que seguirão. Que seja essa nossa Ora ação.

prosa

Progresso nas Gerais

Depois de uma semana, finalmente, o Serviço Autônomo de Água e Esgoto local veio desobstruir a rede que forçava o retorno do dejeto para dentro das casas e lojas próximas. Até então aquela que é uma das principais vias do bairro se portava como um pequeno curso de esgoto a céu aberto, cuja origem principal era a garagem do vizinho, ocupando a sua garagem e a oficina do lado nos picos de fluxo.

Não é a primeira vez que os problemas de saneamento afetam aquela que é uma das cidades que mais arrecada recursos do Estado. Nem parece que o orçamento de um ano inteiro de muitos municípios de tamanho não diferente seja arrecadado alí em um único dia do ano, 365 dias por ano e 366 dias em ano bissexto, afinal, a mineração não para. Tão acostumados com a situação, para resolverem o problema do esgoto, enviaram um caminhão pipa, como se o dejeto na garagem causasse algum problema no abastecimento. Toda a arrecadação municipal parece, a princípio, ser convertida em serviços de má qualidade. É convertida em filas nos sistemas públicos de saúde colapsados, nos buracos das ruas que se assemelham às áreas mineradas na escala possível dentro do efetivo municipal, ruas desestruturadas, estradas sem conservação ou segurança, poeira da cor da hematita explorada impregnada para todo lado… O custo de vida altíssimo obriga a todos terem uma atividade bem remunerada para pagar as contas básicas ou submeter-se à um barraco numa invasão dormir embaixo de uma ponte ou ainda, colocar as crianças em busca de alguma atividade que diminua a carga financeira familiar. Um ciclo vicioso forjado nos tempos da Colonização, baseado na mão-de-obra escrava e na perda de territórios tradicionais para os interesses de uma elite que sequer ali reside.

Aos donos do poder, interesses ilimitados. Os políticos locais também os servem como terceirizados, como carrapatos presos ao couro de um animal incomodam, mas são aceitos. Ao povo ficam as mazelas do sistema, seus territórios sulgados, estropiados, esburacados e feitos de depósitos de rejeitos; suas terras impossibilitadas de cultivo; suas águas repletas de elementos tóxicos, sem vida; e suas vidas… Que vida? Caso não sejam frequentadores dos buracos da mineração por livre e espontânea pressão, restará, mais cedo ou mais tarde, um outro buraco, depois de parar de respirar. Sem mais opções.

Isso é progresso nas Gerais.

prosa

Papagaiada

A encomenda que a muito esperava esperou que todos saíssem de casas para ser recebida pelos vizinhos. Nenhuma novidade nisso. Todavia os dias fora de casa o trouxe infortúnios. Não bastasse a dificuldade que tem de frequentar banheiros alheios, a sinusite o atacou ferozmente após tentar passar a noite sob o ar condicionado que amenizava o calor local. Deveria saber disso também, aquela inflamação já convive com ela a muito tempo, e a cada apronta dele apenas a faz aumentar, principalmente depois que fora atacado pela COVID.

A volta para casa, mesmo tarde da noite, fora bem acertada. A estrada não tinha trânsito e a subida da serra amenizou o calor; fizera bem às suas vias respiratórias. Como o organismo pode reconhecer a chegada em casa? Mudou os ares, mudou tudo o resto. A encomenda iria ver no dia seguinte, e a noite veio-lhe um bom sono. A chuva fraca, o leito conhecido também ajudaram no processo. Amanhecera melhor, mais disposto. Até escrevera uma papagaiada para colocar naquele blog de poucos, porém bons leitores.

O fim do texto, seus leitores podem até falar que a vida continuará a mesma, mas talvez não. Num mundo cheio de notícias ruins, uma papagaiada não agressiva pode até lembrar que ainda existe vida e que ela é feita de pequenos infortúnios e pequenas conquistas que a fazem valer a pena viver.